PESQUISA

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DA PESQUISA
Autoria: Altemar di Monteiro

Teatro popular – danças, cantos, mascaradas, antecedeu à forma erudita como ocorreu na Grécia e em outros locais. Primeiro foram os ditirambos enviados em homenagem a Dionísios, pelos devotos mascarados com peles de bodes e, depois, o teatro propriamente dito que daí derivou. Em Roma, ao lado do teatro de Plauto, Terêncio e Petrônio, o povo criou os mimos e as pantomimas – teatro eminentemente histriônico, obra do mímico.
Altimar de Alencar Pimentel

O teatro de rua, de onde todo o teatro nasceu, possui necessidades técnicas de encenação e de interpretação (ou representação) diferenciadas do teatro convencional erudito. Por séculos os atores de rua tem tentado revelar a técnica específica do seu fazer, refletindo sobre o papel do ator enquanto estimulador de um contato efetivo entre artista e povo (entenda-se por povo a platéia transeunte, ou mesmo a que se predispõe a assistir o espetáculo de rua). Num processo de privatização da arte popular, vários encenadores e pensadores levaram o teatro para a caixa cênica, desenvolvendo métodos, técnicas e poéticas específicas para o treinamento do ator, aprofundando-se em obras naturalistas, realistas e posteriormente, em extra-cotidianas.

Com o processo de desenvolvimento da burguesia, provinda dos burgos do feudalismo, o teatro conseguiu se afirmar como um produto de mercado, inserindo-se na lógica do capital, momento esse em que o “povo” não possui mais o acesso direto ao espetáculo artístico. A cena teatral assim desenvolveu-se, num pensamento relacionado à teoria, ao estudo e ao investimento no treinamento técnico e aperfeiçoamento do exercício do ator.

Stanislavski, Meierhold, Grotowski, Brecht e outros, que até tentaram aproximar as massas, estimulando à reflexão, contribuíram para o crescimento da arte teatral enquanto melhoramento estético, ao tempo que, historicamente, negou-se e esqueceu-se de pensar no trabalho da rua enquanto espaço de trabalho cênico a ser refletido, aprofundado técnica e esteticamente.

O ator de rua do Século XXI possui um novo olhar sobre o seu próprio fazer. Percebe-se a necessidade de aprofundamento teórico sobre o próprio trabalho, tendo em vista à falta histórica de um pensamento consolidado sobre esse fazer. Pouco podemos encontrar de relevante em relação ao trabalho de rua. Num processo de ocupação das leis e códigos estabelecidos para o teatro convencional, os atores de rua buscam, no que foi pensado para o trabalho de palco, a base teórica para a sua arte. Da rua viemos, saímos dela para teorizar, e da teoria voltamos às praças.

O trabalho de ator será sempre trabalho de ator, seja ele no palco, na rua, ou onde for. Os princípios básicos sempre retornam, como afirma Eugênio Barba. Essa necessidade de conhecer um trabalho técnico, buscando o seu próprio método ou modo de fazer, regado por todos os pensadores, reafirma essa máxima. Assim, grupos e cias tem criado o seu próprio modo, a sua própria técnica, misturando em cena o que pode se aproveitar de cada pensador. Atores e pensadores de rua têm observado o quão proveitoso se fazem alguns pressupostos defendidos para o palco, na cena de rua (entenda-se por cena de rua, o próprio teatro de rua brasileiro). Brecht afirma, em seu livro Estudos Sobre Teatro, que “o exemplo de teatro épico mais insignificante, que é como quem diz ‘natural’, um acontecimento que se pudesse desenrolar em qualquer esquina de rua(...)”. É certo que ele defende a sua tese com base na transposição das cenas de rua para o palco, onde ele poderá trabalhar todos os seus efeitos de estranhamento, distanciamento, Efeito V, etc, porém é necessário entender que as cenas de rua, do nosso cotidiano, que vemos diariamente, possuem um valor estético tremendo, se formos refletir sobre o caráter social dessa transposição. O teatro de rua vem trabalhar com essa mesma premissa: o cotidiano e os micro-acontecimentos são o grande mote para as encenações, onde o espetáculo o amplia, sem tirá-lo do seu espaço de origem: a rua.

Grupos e cias., tal como o Grupo Tá na Rua, do Rio de Janeiro, ou mesmo o Nóis de Teatro, em Fortaleza, têm experimentado formulas de encenações que partem do acontecimento cotidiano para o extra, deixando o publico imerso a um acontecimento, uma vivência. Numa esquina qualquer o espetáculo acontece e sem ao menos perceber, o publico se vê inserido na cena de rua, elaborada, estruturada e ensaiada para tal, mas não sai do mote cotidiano. O publico interfere, pensa no problema apresentado, dá sugestões de saídas e mudanças sociais, tal qual o Teatro Fórum, defendido por Boal, onde platéia e elenco estão no mesmo “palco”, pensando juntos nas soluções para o conflito apresentado.

A performance como linguagem também pode ser utilizada na cena de rua. É característica do teatro de rua contemporâneo à utilização das mídias eletrônicas e o contato com as outras linguagens, tais como a dança e o audiovisual. O teatro de rua, na rua ou pra rua tem se aproximado efetivamente com a produção da arte contemporânea, dando possibilidades às grandes massas de ter acesso a um modo de fazer que dialogue constantemente com o novo, com o singular. É notória a predisposição atual que grupos contemporâneos de palco tem tido para experimentar a cena de rua como linguagem de comunicação direta com o espaço urbano e com a platéia, num jogo de ressignificações cenográficas e dramatúrgicas, tal como a proposta empreendida pelo Grupo Pavilhão da Magnólia, no seu processo de montagem do espetáculo “Nossa Senhora dos Afogados”. Trata-se da encenação da peça “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues, adaptada ao contexto do espaço público. Neste caso, tal obra-prima da dramaturgia brasileira será realizada no anfiteatro da Volta da Jurema, à beira do mar de Fortaleza. O local, a céu aberto, incrustado entre rochedos de quebra-mar, aproxima-se da arquitetura de um teatro grego, apoiado sobre uma discreta encosta e em contato direto com o calçadão da Avenida Beira-Mar, sendo, portanto, um elemento de tráfego público, um espaço aberto de profundo significado simbólico.

A escolha do espaço explica-se para além de sua beleza imediata ou do simples ineditismo da proposta. Coaduna-se, antes de tudo, à natureza trágica desta peça de Nelson Rodrigues, inspirada na “Electra” de Eurípides, que por sua vez influenciou a “Electra Enlutada” de Eugene Oneill. A exemplo da tradição grega, essa obra rodrigueana tem forte pendor coletivo, de significados abrangentes, imiscuída na paisagem social. Outro motivo, portanto, de escolha desse anfiteatro à beira-mar: sua relação física, direta (mas também simbólica) com a cidade; quer a cidade de concreto (os edifícios contíguos, situados na orla marítima, o calçadão para os transeuntes), como a cidade in natura (o mar que lhe banha as fundações e serve-lhe de moldura).

A encenação, acompanhada de um forte caráter intervencionista na linha revolucionária de russos como Nicolai Evrêinov ou, mais recentemente, do Teatro da Vertigem, tem, por outro lado, um sabor poético, metafórico, como convém a esse texto de Nelson Rodrigues. Seus recursos cênicos não se limitam à orkestra do anfiteatro, estendo-se a cenas no mar ao fundo (carregadas de traços regionais-universais, como a utilização de jangadas pelo Coro da peça), no calçadão da Avenida Beira-Mar e nos prédios erguidos ali defronte, num entrecruzamento entre o ancestral e o moderno, o alegórico e o real. Buscamos, assim, potencializar as muitas possibilidades do texto rodrigueano: uma tragédia contemporânea, afinal (mesmo que eterna), e carregada de brasilidade, entre o grotesco e sublime. Dotada, assim, de grande sentimento de pertencimento coletivo.


Do pensamento de Teatro Didático, apresentado por Brecht, podemos refletir também sobre os efeitos de estranhamento e distanciamento, uma fuga do psicologismo preconizado por Stanislavski, onde o ator sempre será um ator, e o espetáculo sempre espetáculo. Não pretende-se “enganar” a platéia, numa farsa, pelo contrário, os atores, sempre distanciados de seus personagens, são capazes de auto-apresentarem suas personas, utilizando do efeito narrativo para contar ao publico um fato e instigá-los a pensarem sobre as situações-limites apresentadas. No trabalho técnico do ator de rua contemporâneo não há necessidade de psicologismo, porém pode-se trabalhar com a idéia da sensação enquanto propulsor de uma série de acontecimentos corpóreos, capazes de gerar uma presença cênica, como bem afirma Luiz Otávio Burnier. Não há memória emotiva, não há sê mágico. Como Brecht afirma “Para o ator é difícil e cansativo provocar em si, todas as noites, determinadas emoções e estados; em contrapartida, é-lhe mais fácil revelar os indícios externos que acompanham e denunciam emoções”. Assim como no teatro de Barba, tudo parte do corpo, num esquema de partituras sociais, ampliadas em gestus sociais. Por gestus social seja entendido o complexo de gestos que identificam um personagem e comunica a platéia. Para Brecht, o gestus social é aquele que nos dá suporte para tirarmos conclusões sobre o problema social. Assim na rua também é feito. Parte-se de estruturas corpóreas elaboradas para atingir efeitos calculados na platéia.

Para a ampliação dos gestus, o ator de rua se vê na necessidade de se utilizar de mecanismos que tornem os movimentos maiores, dilatados. É muito comum pensar na utilização de um corpo grotesco, que utiliza das partes baixas corpóreas, tais como cóccix e púbis, para alcançar o efeito de tensões corporais, ligando o corpo numa partitura própria, capaz de gerar o riso e chamar a atenção dos transeuntes. Para Mateo Bonfito, no Livro O Ator Compositor, grotesco é a “exageração e transformação intencional (alteração) de dados naturais”. Segue ainda falando:

Definindo como procedimento da esfera do grotesco a alteração de composições esperadas, por outras, Meierhold nos quer fazer entender, então, a composição paradoxal como um dos procecimentos do grotesto. (...) O grotesco enquanto revelador de estruturas profundas da realidade a partir da utilização de contrastes: cômico e trágico... Mas o grotesco também enquanto definição de um tipo de ator, um ator sintético – capaz de interpretar e passar facilmente pelos dois registros (trágico e cômico), além de ter domínio de seu aparato biológico e de diferentes habilidades: clown, acrobacia, mágica, dança, canto, atletismo...

Podemos comparar também o artista de rua ao ator circense, ou palhaço. Ambos possuem estratégias de cena muito próximas, numa reação clara ao naturalismo cênico. Odette Aslan nos dá, claramente as características do teatro de variedades e do circo. Nesse ensaio, merece destaque a sua fala:

Quais são as qualidades inerentes ao teatro de variedades e ao circo?
- segurar o publico desde o começo;
- o preço é ele mesmo, ele deve dar o máximo de seus esforços e de sua habilidade, saber sustentar a cena sozinho;
- atuar de maneira econômica e despojada; ser preciso;
- ter senso de improvisação, da réplica, segurar o imprevisto, saber contracenar com o publico;
- ter senso de ritmo, do efeito que utiliza e sentido cômico;
(...)

Esse é, por assim dizer, o ator de rua. Aquele que consegue passar por todos os registros emocionais de forma racional e ainda utiliza do domínio sobre as mais diversas possibilidades de utilização do corpo em cena, partindo do grotesco para a explosão energética no espaço aberto. Um corpo ligado e atento, predisposto para todas as possibilidades que a rua possa oferecer. Para Meierhold “o que é essencial no grotesco é o modo constante com o qual ele desloca o espectador de um plano perceptivo que acabou de intuir, para um outro que ele não esperava.” A peripécia aristotélica é muito presente. As ações mudam constantemente, do comigo ao trágico. A cena de rua dança e brinca com o espectador constantemente.

Utilizando as referencias populares, tais como os reisados de caretas e de congo e outras manifestações tradicionais, o ator de rua vai adotando formatos picarescos, despojado de qualquer intuito moralista, tais qual Pedros Malazartes, Casimiros Cocos e Mateus: grotescos, astutos e comunicativos, espelho de um povo. É dessas referências populares que a cena de rua, em maior parte, se constitui, utilizando como principal estratégia a integração ator/platéia e a improvisação. Porém, o modo de se trabalhar o conteúdo tradicional, pode utilizar da ressignificação ou da transculturalização para partir para outras matrizes, como é o caso do espetáculo cearense Sertão.doc, do Nóis de Teatro, que tem investigado essa possibilidade de interface tradicional e contemporâneo.

O grotesco como estratégia de dramaturgia também é muito comum. Na rua, tudo o que possui um tom de seriedade é tratado com galhofa e brincadeira, e as sensações mais bizarras são reveladas com uma seriedade. Há aqui, uma necessidade de ridicularizar as situações cotidianas, ou até mesmo ironizar, se for necessário. Meierhold afirma que essa é a maneira de capturar a atenção do publico de forma mais acentuada.

O ator de rua deve estar ligado numa matriz de movimentos extra-cotidianos, dominando a dança das oposições, o equilíbrio precário e a sua incoerência coerente, como bem fala Eugenio Barba. E todos os seus princípios também retornam para a rua, como já foi afirmado, porem de forma ressignificada, de forma a negar o virtuosismo de um corpo preparado, mas utilizando das suas técnicas para o seu objetivo maior que provem da reflexão social. O ator de rua precisa também de um corpo aculturado, ao invés do inculturado de Stanislavski, ele precisa de uma partitura que saia do cotidiano e amplie os pequenos movimentos. Ele utiliza a cena cotidiana, mas com um corpo extra-cotidiano, com o máximo de esforço para o menor resultado. Como afirma André Carreira “o teatro de rua se fundamenta na possibilidade de transformar o repertório de usos cotidianos da rua para criar uma situação lúdica”. E para isso, é necessário bastante treinamento técnico, como Yoshi Oida fala, “trabalhar fisicamente capacita o ator a ganhar uma compreensão mais profunda de um processo fundamental: através do corpo, aprender algo que vai além do próprio corpo”.

Por ultimo, merece destaque a reflexão feita por Janô, quando o mesmo escreve sobre os pontos de convergência das propostas teóricas da aprendizagem do ator:

Conhecendo e dominando o físico, qualquer ator pode conseguir uma expressão plena, pois é no impulso físico secreto que a criação cênica tem a sua origem e expressão. (...) Todas as emoções têm uma base orgânica, pois as paixões humanas não são abstrações, possuem também uma materialidade – a alma pode ser fisiologicamente reduzida a uma meada de vibrações.

Ele menciona: qualquer ator. Não importa se é do palco ou da rua, os princípios sempre retornam e do corpo é que o ator pode tirar toda a sua expressividade.

 
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